domingo, 31 de julho de 2011

Não dá pra ficar sem Cezita, já tô emagrecendo...

Qual a idade de uma brevidade?

   Era final da década de 60 no interior de Minas Gerais. O galo já cantava no alto da serra que beirava a pequena cidade e D. Conceição já estava de pé arrumando, como sempre, algo de bom na cozinha da grande casa.
   -Bença mãe! Outra vez de pé a essa hora da manhã? Mãezinha, a senhora já está quase passando de meio século de vida, não precisa levantar tão cedo mais!E ainda por cima está fazendo muito frio hoje. Aceita uma xícara de chá? – Mariza, a filha mais velha de D. Conceição, estava junto à porta da cozinha já com um pijama azul e chinelos rosa claro. 
   -Deus lhe abençoe filha! Eu já falei que se eu só ficar trabalhando na venda e depois deitada em casa, o trem da vida passa e me deixa pra trás. E ainda por cima, conversada, só tenho 43 ainda. – ela falou calmamente já abrindo a velha despensa da casa. – Mudando de assunto, espia os bons feitos de sua mãe! Vou fazer aquela receita que todos vocês gostam! Mas só depois que eu pegar o que preciso na venda...
   -Brevidade! Eu amo esse bolinho do paraíso, posso ajudar? Prometo que não vou comer massa crua, quero dizer, posso ir com a senhora à venda? – sua filha logo exclamou correndo para tentar ajudar a mãe.
   -Alto lá Mariza! Não adianta fazer promessa que você sabe que não vai cumprir. – Conceição dava risadinhas enquanto batia de leve na cabeça da filha. – Quem vê você assim até pensa que eu nunca fiz brevidade. Vai! Xispa! Vai brincar de amarelinha ou de boneca com suas irmãs, vou à venda de seu pai buscar o que preciso para a receita...
   À medida que D. Conceição falava, os irmãos de Mariza se aglomeravam na parte preferida da casa, a cozinha, onde todos ansiosos indagavam a mãe sobre a tal brevidade.
   Apesar de ser uma mulher de quase cinco décadas, D. Conceição raramente acordava depois das cinco e meia. Ela era a grande matriarca de uma família composta, até então, por seis filhos e, por essas e outras, não se permitia ficar quieta por muito tempo. Todo minuto que tinha de folga, caminhava até a venda de seu marido José para tirar um bom dedo de prosa com todas as pessoas que apareciam por lá. E não pense você que D. Conceição se sentava pacientemente em uma cadeira do pequeno mercado só para jogar conversa fora. Sempre caminhava para a venda com um rolinho de tricô, um crochê ou uma costura para arrematar na mão ajudando assim José a complementar a renda da família. 
   -Ô mãe, por que o bolinho que a senhora faz chama brevidade? - Tunico rapidamente entrou na cozinha e perguntou ao mesmo tempo em que pegava goiabada na caixa de madeira na velha prateleira. - Será que antes alguém já achou que ele, por ser pequeno, gostoso e derreter na boca podia ser um doce que diminui a idade das pessoas? Ou até retorna aos poucos os tempos da juventude? Ou ainda porque não demora para assar?
   -Pode ser, mais o que você tá fazendo aqui? Deixa sua mãe ao menos separar os ingredientes! Nem fiz o bolinho ainda e minha macacada tá quase toda aqui, ô meu Jesus... Tunico, vai brincar com o Geraldinho ou jogar bolinha de gude que vocês gostam! Aproveitem que hoje é sábado e não tem aula, depois não venham chorar pro meu lado dizendo “-Que mãe chata, não me deixa fazer nada”.
   -Brevidade, obá! Vem mãe, a senhora tá cansada de tanto trabalhar. Pode sentar e deixa que eu termino o bolo. Eu juro que distribuo igualmente pros meus irmãos. – Juca, o filho mais velho de D. Conceição, foi o último a acordar e ir para a cozinha perturbar a mãe.
   -Ah, Deus te abençoe Juquinha. Nossa, queria que meu filho mais velho fosse assim tão responsável e amigo da mãe como você! - A mulher ergueu suas mãos enquanto olhava já para os olhos de Juca. – Bem diz o ditado, quando a esmola é demais até o santo desconfia.
   - Até parece. - disse Lurdinha chegando perto do fogão. - Ele não vai distribuir nada se eu bem conheço.
   D. Conceição aumentou um pouco o tom de voz e disse:
   - Não comecem vocês! Pensando bem, vou aceitar o convite. Vamos fazer assim... vou deixar que vocês façam a brevidade. – ela falou e logo tapou os ouvidos com as mãos, pois o instinto materno já a tinha alertado dos gritos de euforia e emoção que os filhos iriam fazer. – Calma! Quero que vocês vão lá na venda de seu pai e tragam tudo o que uma brevidade precisa, façam a massa, batam, tudo bonitinho... Quem conseguir fazer a melhor brevidade em menos tempo pode ir à matinê do cinema hoje! Enquanto isso vou arrematar um vestido que preciso entregar até amanhã.
   As crianças pensaram, repensaram e logo recomeçaram a algazarra caminhando felizes para a escada da casa. A mãe deu um beijo na bochecha de cada filho e depois foi para a sala arrematar a costura.
   Os filhos de José e Conceição adoravam ir à venda do pai. Para eles, isso já os fazia “gente grande” mesmo que a distancia do pequeno mercado fosse subir alguns degraus e chegar à parte da frente da casa onde ficava a venda.
   -Fecha à porta Maria, seu pai já vem! – Fatinha, a filha mais nova de D. Conceição, subia os degraus pensando que falaria esta frase quando fosse ao cinema mais tarde. Afinal, a beira do caminho era cheia dessas plantinhas cujas folhas se fechavam ao toque das mãos como mágica.
   - Fatinha a gente vai perder o concurso! Não se esqueça que você é minha dupla e pare de se distrair. - disse Geraldinho, o irmão que era somente um ano mais velho que ela.
   As crianças logo chegaram à venda do pai que estava ocupado atendendo um novo freguês...
   -Ceus! Quem é que vejo aqui? Todos de uma vez?– disse seu José.
   Juca tomou a frente e foi logo falando:
   - Bença pai! É que nossa mãe ia fazer brevidade...
   Ele e seus irmãos recomeçaram a algazarra enquanto tentavam explicar toda a história para o pai.
   -Ah certo, que maravilha! – depois de trinta minutos de explicação, José falou. – Meninos na cozinha, que perigo! Bom, se Conceição deixou vocês por conta da cozinha, vou lhes dar os ingredientes. – José riu um pouco e foi aos fundos da loja buscar o sal amoníaco e o resto. – Eu não deixaria os meus filhos pequenos sozinhos na cozinha de casa, mas se a patroa Conceição fala... há-há-há!
   -Obrigado pai! Depois te dou um pouco do meu bolo se o senhor quiser. – Tunico falou já pegando as sacolas. -... Venham logo, cada um carregue sua sacola... Próxima parada, cozinha da mamãe!
   E assim os irmãos saíram alegres e satisfeitos da venda do pai só pensando em como iriam fazer para derrotar o outro na competição.
   D. Conceição continuava na sala costurando enquanto ouvia sua rádio-novela preferida. Os filhos já estavam a postos para começarem a competição e Lurdinha, a filha do meio, fechou a porta da cozinha para a mãe não ouvir o barulho que podiam fazer.
   - Bem, aqui na receita... precisa de polvilho, sal-amoníaco...
   -Lurdinha, onde tá o sal-amoníaco? – Tunico pergunta já rindo para a irmã. – Será que é esse daqui?!? Cheira pra ver se tá bom...
   -Aaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiii! Que trem ruim... Você tem certeza que a receita leva isso?
   -Vamo rápido Tunico! A chata da nossa irmã vai ganhar da gente. – Lurdinha exclamou olhando para Mariza, que estava tranquilamente pegando o polvilho de sua sacola.
   -Que isso Mariza... Acho que você não trouxe o sal-amoníaco! Já começou o jogo perdendo... todo mundo sabe que eu é que vou ganhar esse trem e depois não vou te dar. – Geraldinho exclamou fazendo uma careta para sua irmã.
   -É, se você ganhar e não me der nada, eu... – Juca rapidamente defendeu Mariza. -... eu conto pra todo mundo que você faz xixí na cama até hoje!
   -Buááá...o Juca brigou comigo... buááá. – Geraldinho chorava enquanto tentava abrir o pacote de farinha.
   - E vou contar pra todas as minhas amigas...
   -Vai contar nada sua fidida! – Juca, que gostava de começar uma boa confusão, abriu o saco de farinha de Tunico e subitamente jogou um pouco de pó no vestido laranja de Mariza.
   -Agora você vai ver Mariza...
   -Dessa fez não fui eu! Foi o Ju... arrrrr!
   Lurdinha tirou um pouco de farinha do seu pacote e já estava com as mãos prontas para sujar o vestido rosa de sua irmã Fatinha, porém no minuto seguinte, a menina abaixou e Lurdinha jogou farinha na cara de Mariza.
   -Geraldinho, você precisa de mais massa de polvilho!? ...Eu acho que a sua tá pouca... – como um rápido golpe de ataque, Mariza pegou um pouco de seu polvilho e arremessou o pó nos cabelos do irmão. – Eu até queria te ajudar, mas você não me queria como dupla... Há-há!
   Depois de mais ou menos trinta minutos, tanto a cozinha como também os filhos e filhas de D. Conceição estavam brancos de tanta farinha e massa de polvilho. A mãe, que já ouvia toda a algazarra, correu para abrir a porta do “rinque de farinha”, porém Lurdinha já tinha trancado com chave a saída alegando, “-Ninguém entra, ninguém sai”.
   -Filha! Abre essa porta pelo amor de São Pedro... – a mãe tentava sempre manter o mesmo tom de voz com todos os seus filhos. – Abre a porta agora, se o pai de vocês chegar e entrar pelos fundos será pior...
   -Tunico, corre... Vai pros fundos. – Lurdinha tentou cochichar nos ouvidos do irmão, mas este estava irritado por causa da briguinha na cozinha e não quis ouvir.
   Cerca de um minuto depois, passos largos se faziam ouvir no corredor dos fundos da casa.
   -Tarde demais! O que aconteceu aqui? Vão, perguntem sua mãe onde têm vassoura e pano de limpeza... a faxina é por conta de vocês! – José, que apesar de ótimo pai era mais bravo e menos paciente com os filhos, exclamou aos famosos berros ao ver a verdadeira confusão que estava o ambiente. – Não quero nem saber quem começou e nem por qual motivo, causa, razão ou circunstância! Vão buscar agora o que eu falei, não quero ouvir mais nem um pio.
   Os filhos finalmente saíram cabisbaixos da cozinha e cada um foi buscar um pano para limpar a bagunça. José continuava bravo e saiu para ouvir as explicações de sua esposa, que só depois de muito custo conseguiu acalmar os nervos do marido.
   -Escutem bem meninos. – o pai falou ao lado da mãe. - ...Muito bem! Vejo que trouxeram o que pedi. Apesar de tudo, vocês podem comer a brevidade depois que acabarem! Conceição me contou tudo e achei a história até comovente. Não vamos ajudar com a bagunça, mas vamos inspecionar a limpeza pra que isso não aconteça de novo! Então, comecem já... vou voltar pra venda e estão todos vocês de castigo!
   Conceição e José saíram da cozinha e os meninos começaram tristemente a efetuar a faxina.
  
......
   -Ô vó, por que você não faz brevidade um dia desses? – Perguntei ao ouvir atentamente a historia da época de criança do meu pai.
   -Há... Ninguém mais faz isso hoje em dia não meu filho e nunca tentei ressuscitar a receita... Brevidade é coisa lá de quando eu tinha meus 40 anos...
   -D. Conceição, você ainda tá muito nova! Ainda faz crochê e costura. Por que não pode fazer brevidade? – Ri e abracei fortemente minha avó. – Do que seria o mundo se não fossem as avós para resgatarem as coisas antigas da história de nossa família! Brevidade é uma relíquia de família, e como tal precisa ser passada de geração a geração! E além do mais, é lógico, não dá pra ficar sem a D. Conceição... já tô emagrecendo...
   -Está certo meu neto! Que bom que gostou da história dessa velha vó! Amanhã vou comprar o que preciso para a receita.
   O neto deu um rápido sorriso para a avó que continuava a costurar o vestido, depois seguiu seu rumo até o quarto de T.V pensando como seria o gosto daquele bolinho, porque o sabor de “quero mais” ele acabava de conhecer.     
   

Davi Dumont Farace.
                                         Início: 27/07/2011
                                             Fim: 30/07/2011

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