sábado, 9 de julho de 2011

Não sei, só sei que foi assim... É notícia!

O cabrito que virou bode.

   Era junho de 1970 no interior das Minas Gerais, no distrito de São Bernardo das Águas Verdes que pertencia ao município de  José Olímpio dos Lobos, onde nem todos possuíam energia elétrica...
   -Ernesto, dispois du sirviço quero que tu vai lá na casa do vizim e pega aquele cabritu qui u Mário incumendou pra hoje. O rasta-pé vai sê as seis e já qui nois ficamo de levar a “ceia”, temo que chegá lá cuá minha carruagi com mais o menos uma hora di anticidência!
   -Mais senhor... espia o tempo! São Pedro tá bravo hoje, e mesmo assim se já parar de chover, aquela sua carroça não vai aguentar de lama... a gente pode até demorar mais no caminho e o cabrito esfriar. Eu acho melhor...
   -Num acha nada, quem cocê pensa qui é pra mi dá ordi! Era só o que mi fartava... chispa, vai arrumá o feno e dá pros cavalo e esteja qui pronto às quatro i meia, temos que sair às cinco!
   Ernesto saiu em direção ao estábulo para tratar dos cavalos e Josué, seu patrão, ainda o ficou observando por dez minutos e foi rapidamente para a casa tomar seu banho. Josué não passava nem perto de ser um “bom patrão”. Era uma pessoa ranzinza e metódica. Tudo que ele pensava estar errado deveria ser consertado do jeito dele, ou caso contrário, era capaz de brigar com tudo e todos ao seu redor. Mário nem queria chamá-lo para a festa, mas resolveu convidá-lo, porque era final de copa do mundo e como ele era praticamente o único da região que dispunha de televisão em sua casa ficou com pena do pobre Josué perder aquele espetáculo.
   Passada uma hora, Ernesto já estava esperando seu patrão na porteira do sítio...
   -Vem rápido homem de Deus, eu tô com medo da chuva... Será que não é melhor a gente pegar carona no carro do vizinho?
   -Larga di sê beista sô, a minha possante dá conta di tudo!-  Josué bateu de leve com a mão direita na parte da frente da charrete e um dos nós que amarravam a lona da parte de traz quase arrebentou  -Agora vamo qui vamo! Vem, ôcê trabalhô muito e deixa qui eu tomo a rédia... Pó discansá.
   -Obrigado, mas acho que não dá porque essa estrada tá perigosa e piora se chover.  Ernesto continuava a falar calmante ao lado do patrão.- Vamos fazer o seguinte, o senhor fica olhando o cabrito enquanto eu conduzo.
   Josué pensou e repensou por cinco minutos e depois da “esperada” bronca que o empregado levou o patrão rapidamente pegou as rédeas da charrete e ela começou a andar.
   São Pedro não dava descanso no ceu e Ernesto já matutava como seria uma dificuldade cruzar aqueles 26 km de chuva e lama com o meio de transporte escolhido. Porém agora só pensava em ajudar seu patrão a chegar são e salvo no arraial de Mário... 
  
   O grande dono do arraial já estava impaciente frente à porteira de madeira ao lado do jacarandá. Já eram quase seis e dez da noite e Josué ainda não tinha chegado.
   Sempre que podia, Mário tentava “levar o título” de fazendeiro mais amigo e companheiro da região. Já tinha até se candidatado ao cargo de presidente da Associação de Moradores do Campo, mas por ser uma pessoa meio que ignorante, todas às vezes perdia para D. Margarida, uma mulher culta, porém simples e de menos posses.
   -Patrão, não quero te amolar muito não, mas que horas o cabrito irá chegar? O jogo será as sete e meia, já confirmei pelo aparelho que você vê pessoas em uma caixa de vidro. Mas se o senhor quer fazer a quadrilha, é melhor andar rápido!
   -Por favor Luiz, me chame só de Mário! Não gosto de sê chamado de patrão.-  ele falou entre risos.-  Yerr, vamos preparar a quadrilha, essa copa deu certim cuá noiti di São João. Sabia que u Josué iria atrasar cuá encomenda...
   Os dois caminharam em direção ao centro da fazenda onde os convidados já estavam conversando despreocupadamente ao redor de um palanque coberto com forro azul. Passados dez minutos, Mário anunciou a quadrilha e rapidamente quatro meninas já começaram a buscar o par e puxar a grande roda. Dentro de pouco tempo, todos já estavam dançando.
   - A ponte quebrou!-  Maria, uma convidada com vestido de flores e um laço vermelho no cabelo falou ao alto falante. - Êta forró arretá di bom sô!... Ô a onça!
   -Filha, não tem onça na quadrilha.-  José, o pai de Maria berrou sentado à mesa do lado da fogueira.- Ah, é mió bebê quentão du qui ouví essa fia falando...
   -Uai Pai,agora tem... Nessa quadrilha, se nu tivé trem a gente bota... i cumé qui ér pessoar?!?
   -Éééééééééééééééé!
  
   Distante do arraial, Josué continuava a brigar com Ernesto pela estrada afora. O patrão queria sempre bancar o sabichão da historia e somente depois que levou a charrete pelo caminho errado, deixou seu empregado conduzir um pouco.
   -Está vendo Seu Josué, se o senhor fosse guiando todo o tempo, nunca que íamos chegar ao arraial a tempo. Além do mais, espia! A noite já vem chegando e esta estrada tá um breu. Reza pro seu cavalo ter uma ótima visão no escuro! Ai meu São João, já são seis e vinte e nós ainda estamos a 8 km de distância da festa... e o Tornado, seu cavalo empacou!
   -Para de se perrcupá homi di Deus, a gente vai chegar lá uma hora!... Ma... mais Ernesto, tu vai passar por aí? Diz que t... tem assombração!
   -Larga di sê beista! Tem nada lá não... - o empregado agora imitava a fala e os gestos do patrão.- Não foi o sinhô mesmo que disse istrudia qui essas coisas não existi?- Ernesto falava, enquanto olhava sarcástica e misteriosamente para Josué. - Alto lá, alto lá, e alto lá... Se sou eu que tenho medo, por quais cargas d’água você já tá quase mixando nas calças? Há-há!
   -Arrrto lá digo eu! Impregadinho beista sô... Ouvi um cau...causo que istru...istrudia a Rosinha ta...tava p...passando por e...es...essas bandas a noite...
   -Já sei... a patroa tava passando e uma das “cabeças fantasma” da estrada começou a mugir e correr atrás da coitada... – Ernesto mudou repentinamente a voz para um tom macabro e rouco. – e depois, Rosa nunca mais foi vista... Há-há-há-há-há!
   -Paaaaaaaaaaaaaaara homi, tá me ass...assussustano cada vez mais! E fala baixo... você não sabi si os ispíritu tão com rávia de alguém... já eu nem quero saber mais de Rosinha, eu só não que...quero ir lá p...pra discub...brí, só sei que foi assim.
   Logo a sua frente, na curva da estrada surgiu uma enorme cabeça branca flutuando como se fosse uma vaca sem corpo.
   -Vixe! - diz Josué apavarado. - Que é isso homi de Deus? Já ouvi falar em mula sem cabeça,mas vaca sem corpo nem sabia.     

   -É clara a fúria dos espíritos desta estrada, podemos ver pelos seus olhos! – o outro continuou a brincar com a cara do patrão durante um tempo, depois pegou uma lanterna na charrete e foi ver a “assombração”. – Ah não patrão, a vaca me pegou... Larga di sê beista o sinhozinho! É apenas um animal normal ruminando... vô te ispricá. – e mais uma vez imitou a voz de Josué. – Estava já tudo escuro e o corpo desse ruminanti é preto, por isso a cabeça estava flutuando!
   O empregado parou, riu um pouco da cara do patrão e depois voltou para a charrete. Finalmente o cavalo resolveu andar de novo e os dois ficaram quietos sem se falar um pouco, porém passados 30 minutos Josué quebrou o silêncio e perguntou com voz de menino que se redimia para Ernesto:
   -Então vamos falar agora sobre u “ruminá”, me insina a falar como cês dizem. Vamos lá... Eu rumino... e depois?
   -Ô meu pai, eu mereço esse trem que não sabe nem falar direito. – e olhando com pena para seu patrão, falou rapidamente. – Só te ensino se tu me pedir desculpa por tudo.
   Os dois finalmente fizeram as pazes. Ernesto sabia que pela cabeça teimosa de Josué, aquele momento de calmaria iria durar pouco tempo e resolveu curti-lo ao máximo.

    -Ah, meu cumpadi Josué... que bom que chegou! Como tem passado Ernesto? Se meu amigo judiar de você nessa colheita, pode vir trabalhar aqui comigo...
   -Sempre engraçado você não é Mário? – Josué de repente deu uma cotovelada de leve em seu empregado. – Sinto muito, mas eu ainda sei como se tratar bem um empregado da minha pequena propriedadi... E diga lá homi, que horas é o jogo?
   Eram quase sete da noite e todos na fazenda vieram cumprimentar os dois convidados de uma só vez, muitos, é claro, de olho no cabrito. Porém como a comida tinha esfriado com a viagem, Mário mandou um de seus a esquentarem no forno a lenha para depois todos comerem durante o grande espetáculo da noite.
   A hora mais esperada da noite chegou e Mário subitamente fez um sinal para os sanfoneiros pararem de tocar. Agora todos os convidados se reuniam na grande sala de estar da fazenda para se maravilharem com aquela “caixa mágica” por cima da mesa de madeira.
   -É um, é dois, é três! – o dono da casa ligou o aparelho e algumas pessoas lacrimejaram os olhos. – Pronto! A magia da T.V agora tá mais pertu di nóis... Tensão, o jogo começou... vai cabra, pega a bola e faz gol!
   -Ô fia... é muita emoção! – Marta, uma convidada que beirava já os 42 anos, falou com os olhos molhados para sua filha Janete.
   -Que coisa maravilhosa! Brigado Mário, istrudia quero repô u convite...
   -E será bem vindo Xico! Que bom que gostou.
   -Já tô uma poça d’água, é muito emucionante!
   -Para com isso Viví... se não o seu Zazá também chora...
   Margarida, a mulher “rival” de Mário quando se tratava de eleição para presidente da Associação de Moradores de Campo, que estava vendo todas aquelas pessoas maravilhadas pela magia daquele objeto, resolveu falar e tentar esclarecer a situação:
   -Pois é, nós que estudamos mais um pouco sabemos que isso nada mais é do que as novidades da tecnologia que vêm chegando, estou certa Mário?
   -Arrrto lá! Qui kocê falô? Tem ticnologia coisíssima ninhuma! E só a tumada qui eu ponho no buraco e ela liga...
   -Uai uai uai... Não Mário, ai meu Deus do ceu! – Margarida abaixou um pouco o tom de voz. – Marinho, achei que você por ter essa fazenda toda e ainda por cima querer ser presidente da AMC um dia... achei que você sabia que é o satélite é que transmite a imagem na T.V... Arrr meu Santo Antônio, não é mágica nenhuma, só pura tecnologia!
   -Apoiado! A patroa é intiligente, ela sabe das coisas. – Alice, a única empregada de Margarida falou ao lado de José, e poucos minutos depois, mais algumas pessoas resolveram também apoiar a atual presidenta.
   -Não... cê tá errada mulher... Tem satélitu coisa ninhuma!
   -Apoiado! É por isso que eu voto em você. – Josué, seguido por muitos convidados que não eram tão bem instruídos e gostavam de criar uma boa polêmica, se levantou e ficou ao lado de Mário.
   -Vírrr sua fidida? O povo tá do meu lado e eu vou falar... se eu digo que não tem satélitu é porque num tem! Ta veno us pos’ti’lúis?  Basta um fiapim da coisinha brilhante que passa dentro deles pra gente podê ver a imagi na caixa!   
   -Calma, não se irrita homem de Deus! Mário, Mário? Não creio... um político ilustre como você! Como acha que a coisa brilhante desce pelo cabo de luz?
   -Tu qué sabê di uma coisa. – Mário correu vermelho de raiva, para perto da mesa onde ficava a T.V e com um rápido puxão, desligou o aparelho.
   -Íííííí gente! A caixa misteriosa apagou por uma força oculta! – um senhor de seus 86 anos, que estava mais dormindo do que acordado, exclamou subitamente.
   -Repete, repete na minha cara qui issu é verrrdade! Vai Margarida... bota, põe seu satélitu aí e “rissuscita” a T.V vai! – Mário olhava como um galo de briga para sua rival enquanto Alice comia os últimos doces da festa. – Ô miá fia, sê não vai pô...  pó pô, eu deixo... Arrr quekó fiz pra miricê issu, xiiiiiiiiispa! Vai, vaza daqui de casa e... – Mário olhou ao redor de si e seus olhos pararam em cada um que ele achava estar errado a respeito do satélite. – Vão embora daqui cês tudo! Não quero gente qui credida em satélitu mais aqui não! Margarida, tu pode sê a primeira a ir embora... dispois vai você Alice, tchau Pedro, tchau Ana, tchau Crareti... Tem mais cabritu pro cês não!
   A cena foi quase que um arrastão, Mário começou a expulsar mais de um terço dos convidados.
   -Ninguém vai ver mais jogo coisa ninhuma! Vamo, eu e os meus amigos vamo comer cabritu, não pudému nus misturá kuéssa gentalha!
   E... finalmente o cabrito chegou à mesa de jantar da fazenda, porém só quem não tinha sido expulso conseguiu comê-lo e o causo virou notícia.

     Davi Dumont Farace.
            Início: 06/07/2011
               Final: 09/07/2011

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