sábado, 31 de dezembro de 2011

É... realmente não sei contar um causo em poucas linhas... mas, veja só?!? Não está intrigante a história?!

O mistério de Zé Olímpio.

   Era mais uma noite fria e misteriosa de outono. A lua, diziam eles, “boa pra caçar tatú”, subia lentamente pelo ceu estrelado. O polido relógio da pequena capela de Santo Inácio batia agora 12 badaladas e um rápido vulto negro se podia ver ao longe, perto do córrego ao lado do armazém de seu Tobías. Decerto, quase nenhuma pessoa do apagado município iria ter a coragem de se aventurar a sair de casa em uma penumbra sepulcral como aquela, em uma noite que, segundo o folclore da região, era “assombrada pelos espíritos do passado”. Todavia, as lamparinas do casarão de D. Ercumena ainda estavam acesas e poucos convidados conversavam, alguns mais preocupados que outros, na grande sala de visitas.
   -... Estamos muito felizes com a presença de todos vocês no meu casório com meu querido Zazá. – Vitória Ercumena falava para os convidados enquanto apertava firmemente as mãos de seu marido. – Que bom que resolveram ficar mais tempo aqui... E não se preocupem, têm cama pra todo mudo! Agora dancem e comam bolo à vontade, a casa é de vocês! – Ercumena saiu do recinto e foi dar as ordens para as empregadas arrumarem as camas para os convidados, pois nenhum deles queria botar os pés nas estradas depois de tão tarde da noite.
   -Pois é senhor Josué... quanto me alegro de ver que você ainda está aqui neste rasta-pé com a gente! – Izaías, o marido de Vitória, falou baixo batendo de leve no ombro do amigo. – Aqui, se tá com medo de assombração... não precisa se preocupar, isso não existe. – ele relembrou para Josué aquele velho e recente episódio da “vaca assombrada da estrada”, mesmo fato que fazia do patrão de Ernesto motivo de piada no pequeno município.  Ou se existir, dou três mil contos e reis pra quem achar uma só fera que seja nas redondezas!
   -Intão Izaías, acho que vi uma mula-sem-cabeça perambulando lá perto do jacarandá ontem... – Ernesto, que estava ao lado de Josué, esforçou-se para fazer uma cara de medo para brincar um pouco com os outros dois. -... Intão, o senhor me deve três mil agora!
   -E... Ernesto, n...n...não fal... falei pro cê qui com essas coisas ag... agente não bri... brinca homi! – o patrão olhou seu relógio de pulso e subitamente gelou da cabeça aos pés, pois já passava de meia noite. – Cês mi discurrrpa mai vô deitá... Ercumena! Tá tudo trancado aí?
   Josué estava tremendo de medo, mas como teria resolvido ser novamente candidato ao cargo de prefeito da Associação de Moradores do Campo, achou prudente comparecer a festa de casamento de D. Vitória.
   Dentre o número pequeno de convidados, Margarida se destacava com seu habitual vestido cor de abóbora e um longo chapéu preto com uma delicada e fina renda na frente pra lhe dar um tom mais místico, mas ao mesmo tempo sensual e feminino. Ela, que até o momento liderava nas pesquisas “boca- a- boca” sobre o tão aguardado resultado para as eleições do AMC, continuava a manter a pose de uma das pessoas mais intelectuais do grande recinto.
   -Patroa, espia só a hora! – Alice falou ao mesmo tempo em que olhava para o relógio cuco e pegava mais umas cocadas na grande mesa de madeira. – O tempo voa quando agente se diverte... Bem, já vou dormir... – ela comeu uma cocada e cutucou nas costas de D. Vitória. – Senhora, onde posso dormir? ... Aqui, vosmecê vai deixar as lamparinas do corredor acesas? É que dizem por aí que o tal... não gosta de claridade, e o fogo...
   -Há há, quantas vezes eu já disse para me chamar de você ou senão de Viví! Senhora tá no ceu... – Vitória falou já mostrando para Alice um quarto com três camas arrumadas. – Pode dormir em uma delas querida! E não se preocupe, vou deixar as lamparinas acesas, mas volto a falar qui essas coisas de assombração não existem... cê não viu o cumpadi Josué e a misteriosa vaca da estrada?
   -Há há, brigado Viví! E nem acredito mais nisso não, mas só que não custa previnir...
   -Tá certo... Bem, brigado pela sua prisença então. – Ercumena apertou as mãos de Alice e rumou para a sala de estar novamente.
   Naquela grande sala somente se falava de um assunto agora, o causo do lobisomem, assunto que Ernesto definitivamente não tinha medo e por isso liderava a discussão sobre a criatura. Alguns espertos fazendeiros relutavam-se em acreditar, porém o patrão de Josué juntamente com o marido de Vitória estavam fazendo caras e gestos tão convincentes, que não houve quem não ficasse petrificado nos muitos bancos da sala para ouvir as histórias do ser da noite.
   -Óia gente, eu ulvi... do marido da falecida Jurema, quem contou pra Jandira, que sussurrou pro Juca, que contou pro delegado Sílvio...
   -Pára Izaías... cê vai contar ou não?!? Vem cá, deixa que eu conto a história... – todos os convidados se aglomeraram aos pés dos dois contadores das histórias para poderem ouvir melhor o caso, e com um rápido movimento, Ernesto pegou a lanterna de seu bolso e caminhou para o canto mais escuro da sala para melhor efeito do pequeno feixe de luz provindo agora de suas mãos. – Me acompanhem se quiserem... Ûá há há... Aconteceu em uma dessas noites frias e de lua cheia como essa... – ele falou roucamente e apontou o fino dedo para uma mulher de vertido roxo e chapéu azul escuro, enquanto punha a outra mão na cabeça como um verdadeiro mágico charlatão. – Você, D. Madalena... eu te vejo conduzindo sua charrete pela floresta, vai conduzindo somente com a companhia de seu cavalo Adamastor em uma noite de outono! – Ernesto para subitamente e aponta a luz de sua lanterna para uma das janelas da sala, enquanto lentamente chega ao lado de uma lamparina perto de Margarida e continua a história. – Mas, uma tragédia spia! Adamastor empaca no mei’das folhas cinza e sem vida... Tu é arremessada pra fora de seu charrete... – Ernesto deu outra súbita pausa dramática, desligou a lanterna e depois se juntou aos seus outros companheiros na claridade no ambiente para falar desta vez com seu tom normal de voz. – Bem, isso é tudo o que um mísero empregado sabe... Como?!? Não sei... só sei que foi assim.
   Todas as pessoas na sala de D. Ercumena ficaram perplexas com o fato anunciado por Ernesto. Madalena chorava agora rios de lágrimas sentada no sofá azul fosco no meio do recinto. Não houve quem a acalmasse, estava muito nervosa e olhava para a janela sem parar enquanto devaneava, “-Foi assim mesmo, quase que não passo daquela noite...”. Como se nada tivesse acontecido, Vitória caminhou até a cozinha da casa e depois de um curto silêncio sepulcral que se transcorrera na sala, caminhou até os convidados com uma bandeja e xícaras de chá de erva-doce.
   -Brigado minha flor! – Izaías foi o único quem tomou coragem para falar, todos os demais só tinham forças para beber o chá, inclusive Ernesto, que estava agora com um misto de vergonha e nervosismo. – Vivi, discurrrpa pelo homi. – ele apontou discretamente para o empregado de Josué. – É que ele jura de joelhos que viu esse fato da cumadi Madá...
   -Tá certo Zazá, dispois conversamos a sós. – ela sussurrou aos ouvidos do marido e depois dirigiu sua voz com um tom mais meigo e familiar ao número pequeno de convidados. – Bem, as camas dos senhores já estão arrumadas... O dia foi cansativo hoje, nada melhor do que uma boa xícara de chá antes de dormir! Eu vou levá-los para seus comódi... Ernesto, você vai dormir no quarto de seu patrão...
   Eles sorriram foscamente para Ercumena e, depois de terem acabado o chá, foram se deitar sem dizer mais nada.

...()...


   O galo já cantava lá no alto da serra e Josué abriu subitamente os olhos enquanto lentamente se levantava da cama.
   -Dia! Ai qui bom meu pai, é dia dinovo! – o patrão olhou ao redor e viu que seu empregado ainda dormia calmamente na outra cama. – Acorda Ernesto, seu dorminhoco...
   -Ai patrão, me deixa quieto só mais um pouco! – o outro abriu os olhos meio sonolentos ainda. – Vai tomar café ou caçar arrguma coisa pra fazer. Ôcê não sabe o que sucedeu ontem...
   -Não sei e nem quero saber! Agora vão embora, tenho que cuidar da minha propriedadi... Vai dispidir da cumadi Ercumena, quero sair cedo daqui!
   O empregado caminhou pelo corredor reclamando consigo mesmo de seu patrão. Depois de longos passos em silêncio, avistou Janete, uma das empregadas de Vitória, já se apressando em arrumar o café da manhã para toda aquela gente que fôra convidada para o casamento. Os raios de sol iluminavam o corpo da jovem; estava vestida com uma simples blusa amarela e uma saia verde claro, seus longos e loiros cabelos estavam presos por uma única presilha de cor azul e seu corpo exalava seu perfume favorito. Ela preparava tão cuidadosamente a grande mesa de madeira na sala de jantar que nem percebera a aproximação calada de Ernesto.
   -Dia Janete! O que é que tem pro café?
   -Ai Ernesto, que susto! – ela falou quase deixando um prato de louça cair. – Você sabe que eu me assusto fácil... E além do mais, e com tú mesmo que queria conversá... O causo du lobis...
   -Ai Janete, esquece esse troço! Eu só contei aquilo ontem mais prá fazer medinho bobo na Madalena...
   -Arrrto lá e arrrto lá! Eu num disse que eu acredito, disse?!? – a empregada já falou com as mãos na cintura. – Mais, a patroa me contô, que o Vantuílsu contô pra ela, que o Tobias contô pra ele, que soube pelo Valdemar... – à medida que ela falava, Ernesto ia ficando mais curioso com o caso. – Que vou te contá...
   Transcorridos pouco mais de 45 minutos, todos os convidados de Izaías e Vitória Ercumena já estavam na sala de jantar comendo o famoso bolo de cenoura de Janete e ouvindo o tal caso da criatura.
   -Então gente, me disseram que o bicho tem a pele meio rosa, parece um homem, mas é peludo, se transforma mais ou menos meia noite... e... pode controlar os animais da floresta...
   -Janete querida! – Vitória falou aos ouvidos da empregada. – Já disse que esse tal de bicho homem não existe, volte por seu trabalho, por favor. – Ercumena deu um tapinha nas costas da nova contadora de causos e em seguida falou amigavelmente para os todos os convidados. – Descurrrpa o que sucedeu ontem e hoje, e que meu Zazá e eu távamo doidim pra casar... nem vimos como ia ser a noite... Agora, fiquem mais, a casa é de vocês!
   -Brigado senhora Vitória! – Josué já se apressou em falar ao mesmo tempo em que puxava a manga da camisa xadreza de Ernesto. – Brigado, mas temo que ir. Meu amigo aqui tem que tratar dos cavalos e eu de cuidar do dinheiro da fazenda. O rasta-pé foi supimpa!
   Izaías levantou-se de seu assento e amigavelmente conduziu os dois amigos para a porteira de saída da fazenda. Finalmente, o assunto da criatura da noite tinha sido aparentemente esquecido por parte do dono da casa, que agora discutia maravilhado sobre a nova aquisição material de Josué, um grande e potente cavalo marrom.
   - Pois é seu Izaías, comprei o Trovão pouco depois do memoráver rasta-pé do siô Mário – Josué falou ao mesmo tempo em que apertava as mãos do compadre. – Acodi!  Bem, obrigado pela festança! Nós já vamos, temos muita coisa pra fazer em casa... né não Ernesto?
   No minuto seguinte, o patrão já estava sentado em uma das tábuas da charrete e suas grossas mãos seguravam firmemente as rédeas presas ao lombo do cavalo. Dentre todos os animais que possuía em sua fazenda, Trovão se destacava por ser o mais novo e também o mais rápido dos corcéis de Josué, e por isso, era o animal preferido da casa.
   Por estarem na estação do outono, as folhas das muitas árvores que cercavam o caminho faziam um comprido tapete colorido com tons de verde e laranja no solo arenoso da região. As grandes e velozes patas do novo cavalo de Josué produziam pequenos e distintos sons ao tocar com ritmo e força no solo e Ernesto aproveitou para tirar um cochilo na parte coberta do transporte.
   Enquanto Josué conduzia, as famosas e antigas lendas sobre o tal homem que virava bicho não paravam de atormentá-lo em sua cabeça. Olhava agora somente com um fino resquício de atenção para seu corcel, pois seus olhos já estavam cansados e cada vez mais sonolentos devido também ao sacolejo da charrete provocado pela irregularidade da estrada. Pouco tempo depois, seu corpo tombou involuntariamente ao lado de seu empregado e se adormeceu.
   Rapidamente, Josué fôra acometido de uma terrível lembrança-pesadelo e sua mente o transportou instantaneamente para um dia frio e nublado de inverno. Quatro pessoas estavam conversando despreocupadamente enquanto jogavam cartas na pequena mesa redonda do calmo e acolhedor armazém do senhor Tobías. Uma delas falava alto sobre uma misteriosa criatura que pôde observar em um dia de primavera, e Josué, que era no pesadelo uma das quatro pessoas sentadas na mesa, tomou um gole de cachaça e parou para ouvir.
   -Vishi Maria! Têm dois Josué! – o dono do pesadelo exclamou levando as mãos para tapar a boca e engolir o susto. – Peraí... como se fala quando têm dois docê? Têm dois Josuéis?...
   -Intão cumpadi, vou te contar... mas já vou avisando que não sei cumé qui foi, só sei que foi assim... – o homem que falava na mesa era seu Mário, o mesmo fazendeiro que desde julho daquele ano, estava sendo gozado pelo famoso caso do “satélitu”. – Sucedeu-se em um dia de primavera, mais precisamente numa dessas tardinhas com uma chuva fina caindo. Estava eu perto desse mesmo lugar caminhando de charrete para a minha propriedadi quando o cérr escureceu de repente. Meu cavalo Lanceloti começou a correr na mesmíssima hora e caí de cara naquela água suja do córrego que tem atrás desse armazém... - à medida que Mário falava, sua voz ganhava um tom mais rouco e sinistro. – Foi ele... eu vi... o animal grande e rosa...
   Subitamente um solavanco na estrada acordou Ernesto e Josué, os dois abriram os olhos, o empregado mais rápido que o patrão, e juntos perceberam que haviam caído em um pequeno e sinuoso riacho, embaixo de uma ponte já com as tábuas desgastadas pelo tempo. As rédeas de Trovão se desprenderam da charrete e o animal correu de um só galope para o mato afora, assustado com o estridente barulho de toda a carga rolando pela terra árida. E, diante daquela situação, só restou aos dois companheiros recolher o que podiam com as mãos e caminhar de forma difícil e lenta debaixo daquele calor escaldante que fazia na região.
   -Viu Josué! Kê ko cêpronto?... Ai eu já sei, o caboclo cochilou na istrada... – Ernesto tirou o chapéu de palha e bateu de leve no ombro do patrão. – e por isso nóis tamo aqui Josué! Ô, eu avisei, não avisei? O cavalo é intiligente, mas tem que ter alguém pra guiar ele na estrada!
   Os dois continuaram o caminho brigando até chegarem a uma encruzilhada. O empregado, é claro, não perdeu tempo e foi logo botando mais medo no patrão, dizendo que a tal criatura costumava fazer sua primeira aparição das noites em uma encruzilhada como aquela.
   Porém, o sol brilhava agora com mais intensidade no alto da serra e Josué não sentiu medo ao ouvir os sinais de “-Cuidado!” provenientes de Ernesto, e isso o deu forças para xingá-lo com um ar mais autoritário e enérgico.
   -Conta outra cabeça de baiacu! Todo mundo sabe... Quero dizer... Se é que o tal lambizomi ixisti, ele só aparece à noite! Não credito nesse trem nem a porrete! – ele falou estufando o peito para seu empregado. - Vem, o caminho é esse... – desta vez, foi ele quem parou no meio do caminho e fez uma cara de perigo para o empregado. – Ernesto cuidado!
   O Patrão inesperadamente pegou um revolver de uma trouxa que levava pendurada nas costas e, apertando o gatilho para a estrada aparentemente vazia, soltou um tiro reto no ar.
   -Mais é cabra macho mesmo esse meu amigo! – O outro falou com um tom amigável e fazendo menção de abraçar Josué. – Pena que não vi direito a cena...
   -Cala a boca senão vai hoje vai ter!... – ele estava quase sem fôlego graças a um medo passageiro. – Carma, eu acho que avistei o homi...
   Rapidamente, o patrão começou a correr e a retroceder o caminho. Ernesto tentava o acompanhar, porém Josué corria com a velocidade de uma onça que perseguia uma presa pela estrada afora. Os dois passaram pela mesma ponte em que começaram a caminhada, atravessaram o armazém do seu Tobías e chegaram próximos a uma pequena e torta casa que ficava no topo de uma montanha.
   -Er... Er... Ernesto... eu acho mió agente vorrrtá, acho qui era só uma onça mesmo...
   -Arrrto lá, alto lá meu amigo! Eu nunca qui vi essa casa aqui... Ô de casa? Têm gente?
   Os dois subiram lentamente a montanha e chegaram à misteriosa casa. O lar estava já quase caindo aos pedaços, com madeiras e palhas jogadas no chão por todos os lados. As paredes, todas já sujas e empoeiradas, davam ao aposento um ar mais sinistro e gótico. E a fraca luminosidade fazia com que os dois não enxergassem nem um palmo direito a frente da vista. Definitivamente, o lugar servia agora mais como um refúgio para algo ou alguém que vagava só pela floresta perto dali, ou pelo menos era o que os amigos estavam pensando.
   -Te... tem al... alguma coi... coisa ali. – Ernesto sussurrou aos ouvidos de Josué.
   -Larga di sê beista homi! Se tinha, o meu revolver já matou. – o amigo retrucou no mesmo tom. – Vamo embora, temo mais o que fazer no sítio...
   Os dois amigos deram meia volta e caminharam pouco mais de um passo até o declive da montanha.

   -Uuuuurrrrrrrrrrrrrrrggggggggggg!
   -Ju...Ju... Josué o que é isso atrás de você?!?
   Bem atrás de Josué, alguma coisa acordava por entre os jornais velhos que faziam outrora um grande montinho no meio da habitação. O patrão e o empregado se viraram segurando fortemente na manga da camisa um do outro, e com espanto viram que uma figura peluda e de pele rosada que olhava agora para eles com seus olhos verdes e feios.
   -Ernesto corre!!!!!!!!!!!!!!!!!! – berrou Josué, puxando com força o braço de seu empregado e com a mão direita e com a outra, já pegando no gatilho do revolver.
   -Uuurrrrrrggggggg!!!
   Foi uma correria geral e sem tamanho. Ernesto não sabia se ajudava seu patrão a fugir ou se protegia o tal ser de olhos verdes, criatura que, depois de muito tempo de tiros e tropeços, o empregado resolveu falar que a conhecia de já algum tempo.
   -... Olha agora quem tem cara de bobo baiacu! – ele falou rindo para Josué. – Esse é um dus fí do Zé Olímpio dos Lobos, nossu queridu ex—prefeito.
   José Olímpio fôra o primeiro e mais aclamado prefeito da região. Nos tempos de mandato, tinha conseguido transformar a desajeitada e pacata vila do interior de Minas em um respeitoso e movimentado município para os padrões da época, fôra o responsável por várias construções que iam desde simples casas populares até um grande e oval teatro perto da praça central da cidade, fôra tão aclamado em seu mandato, que os moradores começaram a fazer um movimento para mudar o nome da cidade, a antiga “Vila do Jacarandá” passaria a ser chamada de “José Olímpio dos Lobos”. Tudo corria bem, até que algo misterioso aconteceu e o prefeito se viu forçado a retirar-se do cargo.
   -Dia par todu mundu!– José Firmino, o irmão mais velho do tal “lambizomi”, chegou no aposento de repente e falou com a mão no ombro de Josué – Está lembrado de mim?!?
   O patrão de Ernesto não tinha mais força para falar uma sequer palavra, somente olhava do empregado para o ex-prefeito e fazia uma cara de pessoa perplexa e ignorante.
   -Patrão... aqui, discurrrpa pelo que sucedeu. – ele falou, discretamente tirando o revolver da mão de Josué e entregando-lhe um lenço. – Se me dá as órdi di spricar...
   - Pode disimbuchá, seu traste. – Josué falava com medo, tentando não morrer de medo dos rugidos da tal “fera”, que agora se enroscava na perna de José Firmino.
   -Deixa que eu mesmo explico. – Firmino falou enquanto olhava com piedade para o irmão. A fisionomia de José Jenuíno, a tal “fera”, foi ficando mais agressiva ao passo que o irmão delatava a história de uma tal Zuleide de Assis. – Aconteceu em um dia comum como esse, estava tranquilamente em minha sala particular, acabando meus afazeres diários de prefeito...
   -Uuuuuurrrrrrrrrgggggggggggg – o incomum José Jenuíno rugia e corria sem parar por toda a velha casa, sua aparência alta e demasiadamente peluda fazia uma verdadeira menção à lenda mais temida da região, e Josué logo entendera o motivo.
   -Então, meu irmão gostava logo da mulher do maior fazendeiro aqui da terra do meu falecido pai. Foi o caso de que... ah, cê sabe muito bem o resto... – ele parou um pouco na voz, olhou com pena para Jenuíno, e continuou. – A murrrtidão descobriu a traição e foi logo dar uma cossa no meu irmão... D. Zuleide, coitada, até se sucidou...
   -E então... – Ernesto achou melhor continuar. – aconteceu... Jenuíno saiu de casa e começô a fica dislexadu cu’a vida... Daí ele deixou a barba crescer, não cortava mais u cabelo, e só passou a vivê nessa mata...
   -Uuuuuurrggggggg! – Jenuíno soltou um berro e esforçou-se para falar. Firmino quase teve um troço. –É, dispois... resurrví mi revorrrtá contra todus us cumpadi... Vim pre’ssa casa véia i mi scundi... Agora só apareço pra assustá u pessoárr.
   -Alto lá, alto lá! – Firmino berrou de tanta felicidade. – “Aparecia”. Vui cabra, olha pra sua cara... parece até um lobo com esses dentes afiados por não escovar e esses pêlos pra tudo quanto é lugar no corpo...    
   -Vorrrta pra vida homi! – Ernesto continuava. – Até acho qui essa doença de pele rosa qui’ocê arrumô é purká da chuva!
   A cabeça de Josué fervilhava de pensamentos agora como uma grande panela de pedra prestes a explodir. Todas as histórias e causos que tinha ouvido sobre o lobisomem pareceram fazer mais sentido agora. 
   -É irmão... pó’visá qui u animar das redondeza era eu disfarçado. – José deu uma pausa dramática na voz para olhar lentamente de Ernesto para seu irmão. – E minha mulher deve di ter mi traídu com um... um outro bobo cara de paca fidida du asfarrrto. – Josué, que ouvia atentamente a história, foi avisado através de um sussurro do empregado, que a pessoa que Olímpio se referia era nada mais nada menos que Timóteo, o cara aparentemente mais leal e o melhor amigo do ex-lambizomi. – Tudo por dinheiro! Aquele Zé das unha me deu uma facada nas costa... É, mais dispois, bem feito... O cara se matou depois de saber que minha Zuleide tinha morrido.
   -E foi aí que ele resolverrr fazar u tal butija... – Ernesto falou, rindo da cara de seu patrão.
   -É, eu teria conseguido se não fosse você e esse empregado idiota!
   Ele parou de repente a fala e olhou para os raios de sol já de quase meio-dia que incidiam sobre as folhas das árvores.
   “Foi um dia seco de verão. Eu estava dormindo calmamente no chão di mi’a antiga casa quando Zuleide mi entra na prupriedadi pra pedir suas últimas desculpas... discutimu muito e foi então que ela pulou da janela da mansão e... coitada, foi o seu triste fim... Ah, e depois o povo acha qui fui eu e corre atrás di mim com tochas i facões...”
   -Dispois Josué... – Firmino falou tentando esquecer o passado. – Que meu cumpadi fugiu, virei lenda... e só eu pra ter coragi di amansar a fera...
   -É, de tudo que já vi nessa vida, de todos os perigos que já passei, aprendi uma coisa que nunquinha nunquinha vou esquecer... – Jenuíno deu uma pausa dramática para tomar um pouco mais de fôlego. – Mais de que onça ou jacaré, o animal mais perigoso é o bicho-homem! Só porque tenho essa doença que a pele nasce rosa... – ele mostrou o seu braço direito, em que se puderam ver incidências de hanseníase, além dos pelos grandes e das unhas mal feitas. – Por essas e outras, eles acham que fui castigado por Santo Inácio por matar minha querida esposa!... Pois bem, até que fiz da minha tragédia vingança para eles...
   -E desde aquele dia... – Ernesto recomeçou a falar. – Desde aquele dia que nóis achamo que ele tinha virado bicho e fugido pela floresta... que meu amigo ajuda a manter viva a lenda do lambizomi aqui na região... Também antes acreditava nas lendas, mas depois di qui vi D. Madalena naquela situação da floresta. – o amigo relembrou o causo que contou ainda quando estavam na sala de visitas de D. Vitória. – Tentei correr... mas graças a Deus achei o tal “bicho” e seu irmão. Também iria contar para Madá, mas depois que ela fugiu com medo...
   E depois de mais um longo silêncio, os quatro finalmente voltaram ao povoado e nunca mais se ouviu falar do tal lambizomi.
-Será????????????????????????????????????????????????

 
Davi Dumont Farace.
Início: 02/08/2011
Fim: 06/08/2011
Correção : 31/12/2011




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