terça-feira, 13 de dezembro de 2011

mais um imperdível capítulo de Zé Olímpio!

O porco de Santo Filiciano.



     As bandeirinhas para o dia da festa mais esperada do mês de Santo Filiciano balançavam mesmo com o pouco vento que fazia naquela manhã de sete de abril. O calmo e pacato município de José Olímpio dos Lobos estava, durante os últimos três meses, altamente movimentado graças a todas aquelas festividades que animavam as cidades daquela seca e pobre região. O ex-prefeito José Firmino Cosme da Pinguaça, que finalmente conseguira desmentir, graças à ajuda de Ernesto, os boatos sobre a tal “marrdição du lambizomi”, tinha acabado de tomar posse novamente pelo PMRAZO, partido dos moradores rurais e dos arredores de Zé Olímpio. A cidade, graças às interessantes e inovadoras idéias do atual eleito, tinha modificado bastante desde os tempos da copa de 1970. Agora a calma José Olímpio dos Lobos já tinha luz elétrica em quase todos os seus bairros; o atual governo estava terminando de asfaltar as ruas mais populares do município, e as casas, bem como as fazendas da região, eram continuamente mais cuidadas e embelezadas, graças aos benefícios do PMRAZO. Tudo transcorria na santa paz do Senhor.

     Josué estava, assim como toda manhã de sábado, dormindo preguiçosamente em sua rede, com o jornal diário em frente à cara para tapar os raios de sol que eram um tanto fortes durante aquela época do ano. Sua atual esposa, Dona Maria Florisbela, tinha acabado de preparar o gostoso bolo de coco com morango ao leite condensado, receita passada de geração em geração na sua família e bastante elogiada em todo o município. Era graças ao seu livro “quitutes da roça”, as 169 paginas mais comentadas do momento, que o recém-casal conseguia um bom dinheiro no final do mês.

     - Josué! – Maria grita enquanto mexe na panela de doce. – Dá um jeito de acordar, homi di Deus! O galo já cantou faz tempo e tu ainda tá deitado nessa rede! – sua esposa para de fazer voltas com a colher de madeira e corre com uma vassoura atrás do marido. – A festa já é pô’ da manhã e tenho ainda que preparar um monte de doces pro rasta-pé! Cê comprou meu vistidu azul que te falei pra comprar? – Florisbela, vendo a preguiça de seu marido, quase o empurra da rede. - Óiaki, se você não levantar agora...

     - Carrrma Frô... – Josué boceja se preparando para levantar. – Já tô indo... Ai, mias junta...

     - Ô patrão, o feno pra tratar dos cavalos acabô di acabá. – Ernesto, o empregado que tinha virado uma “lenda-viva” naquela pobre região, entra correndo pela porta da casa. – Eitá, vai ter bolo de coco hoje?!? Eu quero um pedacinho. – o empregado humildemente tira o chapéu e começa a fazer uma carinha de gatinho manhoso.

     Logo depois de Ernesto ter “desvendado” o tal mistério sobre o lobisomem que assombrava durante anos aquela região, o empregado ficara mais conhecido e respeitado por todos os habitantes da pacata Zé Olímpio. Fôra também graças à “descoberta” que ele conseguira arrumar um novo bom e mais rentável trabalho como “restaurador oficial do PMRAZO”, pintando fazendas nas quais a tinta já estava desgastada e regando as plantações da cidade... Contudo, vendo que Ernesto tinha agora novas e melhores possibilidades, seu primeiro patrão aumentava cada dia mais o gral de implicância para com o novo pintor e jardineiro da redondeza; os dois eram como irmãos, brigavam todos os dias, mas depois de 30 minutos faziam as pazes.

     - Ô Jô... – continua D. Maria, agora mais calma e com um ar de felicidade. -... Espia esse cheiro... meu bolo finalmente ficou pronto! E, bem na hora do último capítulo de “corações do cangaço” – ela já tirava o avental e corria para a sala de jantar. – É por isso que gós’ do cê paxão, foi só a gente casar pra você tratar de comprar uma televisão ki pra casa... – Florisbela liga o aparelho com os olhos cheios d’agua. – Ô gente, é muita emoção!... Ah, tá na propaganda ainda. – Maria, ainda com os olhos fixos no aparelho, começa a dar uma nova ordem para o marido. – Aqui, esqueci de te pedir um favor... O rasta-pé do Santo Filiciano já é na segunda, e nesse mês bençoado o padre Luiz falou que a família que fizer uma oferenda pro Santo vai receber uma benção nos próximos dias! – Florisbela levanta as mãos ao céu em sinal de oração. – Então homi, eu quero que tu peque o melhor porco que tem lá no quintal e entrega ele pro Filiciano... – Maria apressa sua voz, pois o aparelho anuncia a chamada da novela. – Quieto cês dois! Shô ver se Mário vai ficar com Zumira ou se ela será traída por sua irmã gêmea Crarete...

     Depois de um tempo, Josué começa a implicar com Ernesto.

     - Ô, ê tá querendo que eu busqui o feno... pur ká di quê que eu te pago? – o patrão se pergunta ainda estático na sala. – Em, me respondi se tu é agora o maiorarr daqui da rigião... – Josué, que não era uma pessoa muito tranquila de se conviver, se tornava um verdadeiro patrão insuportável em manhãs de fim de semana, contudo, Ernesto já tinha aprendido ao longo dos anos de trabalho a ter paciência e não enfrentar “de frente” aquela grossa autoridade. – Virgem Maria! Ki ko fiz pra merecê esse cabuclím aqui na minha propriedade... Vai lá no armazém do Tomaz e compra o que precisa seu trasti... Cê ouviu minha mulher, tenho que sair...

     -Alto lá, alto lá e alto lá! –Maria tenta não gritar para conseguir ouvir as vozes do elenco da novela. – O trem do porco é até segunda de manhã que você tem que entregar... Agora xisssssssspa Josué! Se você não for lá na venda comprar o feno agora...

     - Tá bom mia’ amora. – Josué fala com a cabeça baixa e com voz de pessoa emburrada. – Eu vou... mas só se o Ernesto for juntu. – ele caminha até o empregado e o puxa pelo colarinho da camisa; os dois saem da casa. – Vem trasti... tu me amolou, agora vai carregar o feno todo sozinho... de lá até aqui.

     O patrão de Ernesto era famoso também na região por ser o cara mais muquirana de toda a Zé Olímpio. Ele era a única pessoa no município que se prestava a percorrer aproximadamente 8 km a pé, distancia de sua casa até o armazém de seu Tomaz, para não “gastar o casco” de seu cavalo Tornado... E lá iam Josué e Ernesto implicando um com o outro novamente pela terra árida do campo...

     E o tempo se passou.

     - Ô patrão, desse jeito a gente vai chegar tar’dimais na fazenda. – Ernesto parou de caminhar e sentou, pingando de suor, embaixo da sombra calma de um jacarandá. - O sol tá miutu forti! Cê bem que pudia me judar a carregar um pouco né não...

     - Deixa di sê bicho priguiça... já tô até avistano a portera du vizim! – Josué, que não era bobo nem nada, pegou rapidamente um saco de feno das costas de seu empregado, pois os dois já iriam chegar em casa e assim o patrão evitaria um novo bate boca com a esposa... – Deixa qui eu levo um saco... quero mostra pra Flor qui ti ajudei... – o patrão pensou alto e Ernesto deu uma risadinha abafada. – Agora vosmesê tem o feno... e é bom tratar da mi’a propriedadi logo, ou vai ficar sem o dinheiro do mêis e sem o bolo da Flor...

     - Ah... – Ernesto suspira de cansaço. – Esse é meu patrão...

     Os dois finalmente chegam à fazenda e Josué mais que depressa ordena para que Ernesto entregue os dois sacos pesados de feno em suas mãos. O empregado, não querendo incitar uma nova confusão, obedece se esforçando para dar um sorriso.

     - Jojo... cê não credita! O Mário da novela fugiu com uma amante... a dona Godina! – Maria Florisbela grita da varandinha da casa. – Eu sempre suspeitei, aquela gorda não era uma tal “flor de açucena cheirosa” como todo mundo lá na televisão pensava... preferia ele com a Zumira... e mais... – ela estava chorando de tanta raiva graças ao ultimo capítulo inesperado da novela, seu único consolo agora era ver que seu “responsável” marido trouxera sozinho os dois sacos de feno que Ernesto tinha pedido. – Ah meu amor, você trouxe o feno todo sozinho... por que você não foi de carro, ou então pediu Ernesto pra te ajudar? Bem... agora se vocês quiserem, tem bolo na mesa da sala... – e virando para seu marido, fala novamente. – Ô, cê precisa comer direito, pois amanhã quero que tú vende o porco pro Santo...

     O patrão e o empregado correram igual criança para a cozinha da casa e Florisbela se apressou em partir o bolo igualmente para os dois meninos para evitar uma nova implicância dos dois...

     - Mi’a flor... – Josué falava ainda de boca cheia. – não quero te ver triste... ô, manhã a tardi, depôdi vende o porco... vou lá na fazenda du iscritor da novela e vou dar um chuti na canela dele e saio correndo...

     - Sai nada patrão. – Ernesto se intromete na conversa. – O cara é importanti e cê nem conhece o cabra direito...

     - Ô, sussega u facho e dispois vorrrta a trabalhá. – o patrão falou rapidamente assim que sua esposa virou as costas e foi mexer na panela.

   

    Na manhã de domingo, um dia antes da grande festa da cidade, todos os moradores estavam apressados arrumando seus apetrechos para a noite tão aguardada para o mês de Filiciano. Josué, como sempre, estava dormindo tranquilamente em sua rede com o jornal diário em frente à cara enquanto sua esposa tentava se ajeitar com um vestido vermelho berrante que tinha achado no fundo de seu armário.

     - Ô mi’a paixão! Acorda e levanta dessa rede... cê não ouviu o sino da igreja não? Já são nove e doze! – ela para um pouco na voz e toma fôlego para conseguir abotoar o vestido. – E o porco que tú falou que ia doar pra igreja... amor, pruveita e compra um vestido azul cintilante bem bonito pra mim...

     - Carrrma mulher. – Josué já levanta pensando em um novo artifício. – Qui padre é esse qui roba o dinheiro di nóis? Se ele te mandar cair no buraco, cê cai também?... Pronto, só vou calçar minha butina e pegá o porco mais bonito e entregar de mão bejada pro Santo...

     - Nossa! – ela fecha o vestido subitamente. – Santo Filiciano vai nos abençoar di mais! Ô amor, cê pó tê certeza... nossa vida vai melhorar muito depois dessa graça... – à medida que Maria fala, vai ficando vermelha igual o vestido. – E aproveita pra comprar um novo vestido pra mim, esse tá muito apertado...

     Josué riu um pouco; calçou a bota e despediu-se de sua esposa. Logo depois, passou no chiqueiro e pegou o melhor porco que tinha e o amarrou firme na carroça... Ao ver que seu patrão saía da propriedade logo tão cedo, Ernesto foi averiguar.

     - Dia Josué... Qui bom qui você tá um pouco mais animado hoje. – o empregado se apressou até a porteira da pequena fazenda. – Boa viajem. Que Filiciano ti acompanhe!

     Josué estava desde cedo matutando alguma coisa em sua cabeça e por isso nem quis esquentar os miolos com as “implicâncias matinais” feitas para seu amigo Ernesto. O empregado até estranhou o comportamento do patrão, mas depois de um tempinho voltou a trabalhar na horta da propriedade...

     Depois de quase uma hora e meia de viagem, Josué já estava impacientemente escorado em um tronco de um frondoso salgueiro em frente a grande propriedade de Mário Vicentino da Silva Pereira, um de seus companheiros de pinga e também um dos poucos que o aguentavam naquela pacata região.

     - Acorda homi di Deus! – Josué gritava para todo mundo na rua ouvir. –... Filis dia di Santo Filiciano pro cê. Como vai a família? Baum?!? – ele tentou pacientemente esperar com que Mário aparecesse na varanda e depois tornou a falar. – Aqui, tu sabe qui ocê é meu conterrânio do coração, né?!?... Abre pra mim, quero falar ko cê.

      - Ai meu Santo Filiciano, essa hora Josué? Tá querendo o que?!? – Mario abria as porteiras de sua fazenda e tentava convidar gentilmente seu amigo para entrar. – Que te traz por essas bandas aqui tão cedo homi?... Pó pega pão-de-queijo, minha mulher fez onti anoiti... mas tá baum ainda.

     - Já qui u senhor tá oferecendo, não vou fazer assa disfeita. – Josué falou com a voz mais amigável possível. – Bem, vou direto ao assunto... sabe aquele jogo de buraco qui nóis apostamo um galo? Cê pode me pagar agora?

       - Ai ai ai ai ai, sabia qui tinha caroço nesse angu... – Mario, que esse ano concorria novamente ao cargo de presidente da Associação de Moradores do Campo (AMC), achou melhor manter uma conversação agradável e procurou não fazer rodeios. – Ah... iria mesmo entregar a sua encumenda na sua fazenda hoje a tarde; mas já que o senhor quer agora... – ele colocou a mão no ombro do amigo. – Vem aqui... seu prêmio já tá até amarrado do lado da garagem...

      - Brigado Mário... Deus te pague! – Josué acomodou o saco com o galo ao lado da caixa contendo o porco e assim dirigiu uma última saudação a seu conterrâneo. – Tenha um bom dia. E, discurrpa u incômodo e tudo mais... inté!

     - Inté Josué... e não tem nada com u que se discurrpá, cê já é di casa!

     - Vou matar dois kuêi com uma cajadada. – Josué não se conteve e falou baixo consigo mesmo enquanto sorridentemente conduzia Tornado para a praça central da Zé Olímpio...



     O relógio da igreja já batia quase duas horas da tarde e Josué estava no momento escorado que nem um bicho preguiça perto de uma frondosa árvore ao centro da movimentada praça. Devido a grande festa que se avizinhava na região, muitos dos moradores e moradoras da cidade e dos arredores estavam correndo e esvaziando as prateleiras das pequenas lojinhas... eram uns penduricalhos e apetrechos que pareciam não ter fim!

     - Ó o porco, ó o porco... quem vai querer?! – Josué gritava já impaciente no meio dos passantes.

     - Vichi Maria! Quanto que tá o leitão... quero fazer uma surrrpresa pra mi’a mulher nesse dia bençoadu... – um transeunte que parecia conhecer Josué de longa data, falou com os olhos todos brilhando. – Tardi cabocru, como anda essa força?

    - Tardi Luiz, bom te ver aqui... ou, tô bem... e tú? – o outro falou, tentando ser o mais amigável possível. – Óiaki qui maravía di porco! Vai reder um bom churrascu pros cês no sítio...

     - Que bom! – o amigo amarrou sua trouxinha em um tronco de árvore e sentou-se em uma mureta para tirar um dedo de prosa com seu compadre. – Intão Josué, a vida tá mui’difís hoje em dia... o trabaio lá no sítio num tá qui mi dexa conversar...

     E assim, o esperto fazendeiro começou a ficar feliz. Ele já sabia de antemão que uma conversa com seu compadre Luiz iria demorar mais de uma hora, contudo, reparando nos olhos famintos do amigo, Josué tinha certeza que tinha conseguido o que queria.

     - Ô Luiz, mi discurrpa essa disfeita... – o fazendeiro parou um pouco na fala e arquitetou em sua mente um plano de fuga. – Tô com um tikitim di pressa! Mas ispía só o porco, e custa só 20 conto di réis...

     - Déis conto!!!!! – os olhos de Luiz brilharam ainda mais. – Tá bará’dimais homi! Brigado... – e colocando a mão no bolso, tirou a carteira. Desta vez, os olhos de Josué brilharam como foguetes. – Filiciano te pague em dobro!

     - Dobro vai ser... – o comerciante rapidamente tirou um saco de arroz da parte de traz da carroça. – Quero dizer, como sô um homi muitu generoso... vou dar pra tú esse lindo galo por só...

     - De graça! Ôshi... nunca qui vô isquecer esse dia...

     - Nossa, assim você me quebra! – ele procurou um jeito mais simplório de dizer. – Ocê é meu cumpadi a tanto tempu... Vamo, a patroa vai ficar filizona si ocê levar um galo di brindi pra casa... E pro cê custa só 150 conto di réis!

      - Que, que, má isso é um bsúrdi... – Luiz quase tem um enfarto fulminante. – Purkádiquê qui o galo é 150 e o porco é só 20?!?

      - Cumpadi... cê não vai fazer essa disfeita né não? Esse galo é ispeciarr... é sim... pois é, pois é, pois é, pois é. Eu ouvi dizer qui’u bichu é mágicu... Ô, cê bota ele pra assiti os jogos di futebol ko’cê, aí é só pregunta pra ele que vai ganhar a partida... Si ele cantar, é porque o time qui ocê falou vai pra finár. E já falei que o conto dele desperta difunto?!? – e assim, Josué inventou mais artimanhas até conseguir vender o tal animal.

      - Ah não Josué, intão faz u siguinti... Eu só levo o o porco e o galo fica com tú, nem credito qui u bicho=u é mágico mesmo...

      - Vishi digo eu Luiz, se te falei qui u bichu é mágico é porque ele é... e tem mais, o porco é meu e só vendo u animarr junto com o galo. – Josué parou para respirar e depois continuou. – Ah qui maravía! Tu apostandu num time que sabe que vai vencer na copa do anu qui vem! E tudo graças a esse lindo e simpático galinho...

      - Tá bom, tá bom. Pela nossa amizade... e também pelo Filiciano, vou levar os animar. Mas óiaki, si ocê tiver mi passanu a perna... óia qui u Santo vem e puxa sua canela – e olhando o relógio da igreja, exclamou. – Vichi mãe rainha, já tá quase na hora do jogo de antis da festa! Bem, té mais ver meu amigo, passar bem...

      - Té mais... – Josué, vendo que Luiz o deixava, fez uma cara de espertalhão e caminhou para a igreja. – Agora, é só dar os déis conto miseráverr pro filís... e comprar o vistidu ku dinhero du galo... Brigado Filiciano! I us 90 ou 100 conto que sobrar é meu!

      E assim, Josué caminhou feliz da vida pela rua afora.        





       Davi Dumont Farace.

                             Início: 07/12/2011

                                     Final: 12/12/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário